Ilustração: Monia Nilsen.

Será que a Ética é ruim para os negócios (de design)?

Quando os designers se olham no espelho (ético) e não gostam do que vêem.

ruimartins
8 min readApr 30, 2021

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Artigo traduzido da versão original inglesa por André Grochowicz

Logo no começo do meu primeiro trabalho na área de design ficou evidente pra mim: os designers talvez não vão salvar o mundo. Contudo eu percebi, apenas muitos anos depois, que eles podem ter um papel importante de evitar que as empresas para as quais trabalham prejudiquem seus consumidores. É, na verdade, parte do dever do designer. É um ganha-ganha: seus clientes ganham a confiança das pessoas e você consegue dormir melhor à noite. Parece simples, certo? Bem, a verdade é que é um pouco mais complicado que isso.

Os eventos dos últimos 3 anos no mundo da tecnologia trouxeram para a nossa profissão o entendimento de que se os designers não se atentarem e assumirem sua parcela de responsabilidade, coisas terríveis vão acontecer. O design antiético pode prejudicar as pessoas. Mas a maioria de nós, eu gostaria de acreditar, está nessa profissão exatamente pela razão oposta: nós queremos ajudar as pessoas, fazer o bem através do design. Então como é que isso foi acontecer? Em partes eu acredito que seja porque, por medo de focar nos problemas, muitos designers não estejam abordando essa questão muito bem.

Esse assunto se tornou inevitável tanto para os designers enquanto indivíduos quanto para as empresas como um todo. Ao mesmo tempo em que cada vez mais somos colocados diante de importantes decisões éticas em tudo o que fazemos, geralmente é difícil reconhecer o conflito que existe entre fazer a coisa certa para os usuários (e para a sociedade em geral) e atender os objetivos da empresa que nos contratou para começo de conversa.

Um código para os designers

Uma das razões pelas quais é difícil para os designers lidarem com questões éticas é que ainda temos poucas ferramentas para enfrentar as questões éticas que surgem no nosso trabalho. Diferente de vários dos métodos no nosso kit de ferramentas, muitos designers não aprendem sobre Ética durante sua formação. Uma olhada rápida nos currículos de várias universidades de elite (pelo menos na Europa) evidencia um simples fato: aparentemente a Ética não é tão relevante. O que significa que: ou a maioria delas precisa adicionar Ética como parte da ementa ou não estão fazendo um bom trabalho no ensino desse conhecimento (se você é parte de uma instituição de ensino e acha que essa é uma afirmação injusta, eu espero que você se posicione).

Não estou falando de moralidade (que é de uma natureza social, cultural ou religiosa), estou falando sobre como devemos direcionar nossas decisões profissionais como comunidade.

Além disso, temos o simples fato de que, diferente de engenheiros, médicos ou advogados, os designers não obedecem necessariamente a um código de ética, mesmo que a história recente nos mostre que podemos ajudar a causar um danos enormes à sociedade. Esse é exatamente o ponto que o Mike Monteiro traz no seu livro “Ruined by Design” (“Arruinado pelo Design” em tradução livre), no qual ele traz um código de ética open-source (obrigado, Mike!) que você pode conferir em português aqui. O problema é que um código de ética não é uma coisa trivial: todo o ponto de falarmos sobre Ética é ter princípios fundamentais e universais sobre o que significa agir para o bem comum, ou o que é viver uma vida melhor. Não estou falando de moralidade (que é de uma natureza social, cultural ou religiosa), estou falando sobre como devemos direcionar nossas decisões profissionais como comunidade.

Enquanto os designers continuam expandindo sua influência para além de suas habilidades técnicas e avançam sobre territórios como solução criativa de problemas e transformações estratégicas, eles estão se sentando à mesa em que decisões importantes são tomadas. Por mais que essa transição tenha dado a eles influência, ela também evidencia a necessidade de enfrentar novas responsabilidades, que são também mais pesadas. Para que suas vozes sejam ouvidas, eles precisam fazer mais para se manterem relevantes: eles precisam de um conhecimento profundo sobre a tecnologia que está sendo utilizada e quais as implicações de suas escolhas para os usuários. O entendimento avançado de como lidar com a tecnologia é agora indispensável para um designer. E sim, uma estrutura ética precisa guiar essas escolhas. Se você pensa diferente, você está sendo ingênuo.

Depois de 20 anos na área, sinto que o design enquanto profissão ainda é relativamente imaturo na parte ética. Pra mim, a reflexão ainda é muito silenciosa, muito marginal, muito pequena, quando comparada com outras profissões com uma importância social de tanto impacto.

Já ouviu isso tudo antes?

Claro, isso não é novo. É um assunto que tem incomodado os designer por décadas. Ken Garland liderou um grupo que lançou o “First things first manifesto” (“Manifesto primeiro o mais importante” em tradução livre, lançado em 1964 e renovado em 2000). Em 2007, o Designers Accord (“Acordo dos Designers” em tradução livre) teve o objetivo de “avançar o diálogo em torno da Ética, práticas, e responsabilidades da comunidade criativa.” Em 2009, David Berman lançou o “Do good design” (“Design para o bem” em tradução livre), estimulando designers no seu “Compromisso em fazer o bem”: a serem honestos com sua profissão; honestos consigo mesmos; investirem pelo menos 10% de seu horário de trabalho ajudando a reparar o mundo. Existem vários outros exemplos, incluindo o “Ruined by Design” que o Mike Monteiro publicou em 2019 e eu já havia mencionado.

Contudo, depois de 20 anos na área, sinto que o design enquanto profissão ainda é relativamente imaturo na parte ética. Pra mim, a reflexão ainda é muito silenciosa, muito marginal, muito pequena, quando comparada com outras profissões com uma importância social de tanto impacto.

Não importa se você quer fazer errado ou não — são as consequências que importam no final

Isso nem deveria ser uma questão

Eu sinto o elefante na sala: de um lado as pessoas de negócios podem estar olhando para a Ética no design como mais um fator limitante; e, do outro lado, designers acham melhor não trazer esse assunto para discussão, com medo de adicionar um obstáculo. Mas como James Williams muito bem colocou (em Ethics for Design), “Ética não é um pedal de freio, mas um volante”. Assim como outras transformações (segurança, economia verde e circular, responsabilidade pela cadeia de suprimentos, para citar alguns), a habilidade de demonstrar que uma empresa tem princípios éticos que a guiam para além do balanço contábil é algo que gera confiança, constrói lealdade e atrai investimentos. Qual o valor disso para sua empresa?

A lacuna ética é tão grande agora que na verdade se torna uma oportunidade para alguns. No mundo dos mecanismos de busca, por exemplo, nós vemos empresas como a Duckduckgo ou a Qwant com uma proposta de valor bem sucedida baseada na privacidade do usuário como um fator diferencial. Saindo do mundo corporativo, isso também se aplica a governos e instituições, como nós temos visto durante a pandemia: quão eficazes são as políticas de saúde em países onde as pessoas não confiam em seus governos?

A habilidade de demonstrar que uma empresa tem princípios éticos que a guiam para além do balanço contábil é algo que gera confiança, constrói lealdade e atrai investimentos.

É verdade que a convergência entre negócios e Ética deveria ser um fator higiênico. Mas aqui é onde o consequencialismo vem com tudo: não importa se você você quer fazer errado ou não — são as consequências que importam no final. E porque as escolhas são complexas, é responsabilidade do designer ajudar seus clientes a navegá-las. Talvez para chegarmos lá, vamos precisar de um banho de ética (ethical-washing) assim como já fizemos com outras questões. Mas pelo menos já é uma pressão para que a Ética faça parte do processo de design. Explicitamente.

Problemas e mais problemas! Alguma solução?

Na Europa, no que diz respeito à privacidade, a implementação legal da GDPR (“Regulação Geral de Proteção de Dados”) foi um passo importante. Na Noruega, onde eu moro, o Design Universal é obrigatório por lei, punindo o seu não cumprimento como um ato de discriminação (que pode ser acionado por qualquer cidadão sem precisar pagar nada por isso). Critérios de sustentabilidade direcionam as escolhas de consumidores e investidores, e mais atenção é dada ao tripé da sustentabilidade.

Todas essas coisas são exemplos de Ética, a serviço do bem comum. Isso vai ter um impacto em como usuários e consumidores tomam suas decisões. Então essas são algumas medidas para jogar na categoria “coisas que podem ser feitas”:

Adote um código de Ética. Um código deontológico, como o proposto por Mike Monteiro é com certeza um bom começo. Se você quiser fazer adaptações ou criar o seu próprio, vá em frente. Mas os princípios fundamentais de trabalhar para o bem comum precisam estar ali. No final das contas, um código de Ética só vai funcionar se for compartilhado por toda a comunidade de design, mas começa com cada designer enquanto indivíduo. Nós nunca vamos saber se de fato compartilhamos os mesmos valores se não falarmos quais são eles.

Torne o entendimento da tecnologia parte da sua abordagem de design. Procure o conhecimento, sistematize ele a faça com que ele seja parte do seu processo de design. Melhor ainda, compartilhe com seus colegas. Na consultoria que eu trabalho, nós começamos a desenvolver métodos para equipar todos os designers com as ferramentas necessárias para entender qual o papel que a tecnologia pode ter. Nós investigamos, nos questionamos, exploramos os pontos positivos e negativos de qualquer coisa desde realidade aumentada até inteligência artificial, indagando a relevância e potenciais ganhos e perdas, incluindo do ponto de vista ético. Nós chamamos de Tecnologia como Material de Design (“Tech as Design Material).

Tenha sistemas implementados para checar como você está progredindo com indicadores éticos. Pode ser através de tags nos seus projetos, ou uma simples planilha. Existem vários indicadores potenciais para você começar: ODSs, privacidade, acessibilidade, transparência, design inclusivo, para citar alguns. É importante estabelecer em grupo metas de quantos projetos você quer abranger em cada uma das dimensões éticas que são importantes para a sua empresa. Se, por exemplo, seus colegas compartilham dos mesmos valores de sustentabilidade, você pode ver se está vivendo o que prega.

Have systems in place to check how you are tracking with ethical indicators. These can be tags into your projects, or just a spreadsheet. There are many, potentially: SDGs, privacy, accessibility, transparency, inclusive design, to name a few. It’s important to set goals for how many projects you wish to cover on each of the ethical dimensions that are important for your company as a group. If, for example, your colleagues share the same sustainability values, that way you can see if you are “walking the talk”.

Intencionalmente, eu não usei “5 medidas éticas que você pode adotar como designer” como título deste artigo, por três razões: 1) Eu só escrevi quatro, 2) Eu acho esses títulos meio provocativos e 3) porque eu sou cético com receitas de bolo. Estas são algumas boas práticas que já são adotadas na comunidade de design, mas com certeza vão surgir muitas outras. Meu objetivo não é criar uma lista com mandamentos éticos, mas chamar à ação quando surgirem implicações éticas em nosso trabalho, quando os interesses de negócio e dos usuários entram em conflito.

Então fique à vontade para contestar esse artigo no seu processo de reflexão. Se você acha que é bobagem, deixe isso aqui de lado. Só não finja que o elefante não está aí.

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ruimartins

Creative Leader for digital design @ EGGS Design in Oslo. Works with the cross-over between technology and design, for the purpose of helping humans.